Apesar dos impactos sociais e econômicos causados pela pandemia de Covid-19, pessoas refugiadas e migrantes venezuelanas que participaram do chamado processo de interiorização tiveram mais acesso a serviços básicos, como educação, saúde e emprego, quando comparadas às pessoas que permanecem abrigadas em Roraima. As oportunidades, entretanto, ainda beneficiam mais homens que mulheres, o que evidencia a necessidade de ações mais voltadas a gênero. Esses são alguns dos achados da pesquisa “Oportunidades e desafios à integração local de pessoas de origem venezuelana interiorizadas no Brasil durante a pandemia de Covid-19”, lançada na última quinta-feira, 11, pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), ONU Mulheres e o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), com o apoio do Governo de Luxemburgo.
Os principais dados da pesquisa foram apresentados em evento realizado em Boa Vista (RR), que contou com a presença de representantes da sociedade civil, da academia e de organizações que também trabalham para acolher e atender pessoas refugiadas e migrantes, tanto no estadoquanto durante o processo de interiorização.A estratégia de interiorização é um dos pilares de atuação da Operação Acolhida, ondepessoas refugiadas e migrantes que estão em Roraima são realocadas voluntariamentepara outros estados do Brasil, apoiando o processo de acolhimento e proteção humanitários até então fortemente concentrados na fronteira com a Venezuela.Desde 2018, mais de 76 mil pessoas foram interiorizadas para mais de 800 municípios em todas as regiões do país.
“A estratégia de interiorização no Brasil é referência mundial neste tipo de integração e no recebimento de refugiados e migrantes. Um dos grandes feitos do estudo é mostrar como este processo transformou a vida das pessoas”, disse Arturo de Nieves, chefe interino do escritório do ACNUR em Roraima, durante o evento de lançamento da pesquisa.
Perfil populacional–Embora o número de homens e mulheres venezuelanas interiorizadas seja similar (51,7% e 48,2% da população interiorizada, respectivamente), a maior incidência de mulheres em algumas modalidades de interiorização dificulta a integração socioeconômica delas nos novos destinos. Enquanto as mulheres representam apenas 27,3% das pessoas que são interiorizadas com vaga de emprego sinalizada, elas são maioria (57,3%) na modalidade reunificação familiar, por exemplo.
Quando as refugiadas e migrantes venezuelanas são interiorizadas com filhos e filhas, a dificuldade de inserção é maior – cenário ainda pior para as que estão a frente de famílias monoparentais.Ou seja, os dados colhidos pela pesquisa mostram que, no processo de interiorização, pessoas solteiras e sem filhos acabam tendo mais chances de irem para outros estados com a possibilidade de um emprego sinalizado antes mesmo de deixarem os abrigos em Roraima.
O desejo de engravidar ou não também foi abordado durante a pesquisa e indica pontos de atenção. “A pesquisa mostra que pouco menos da metade das mulheres entrevistadas têm acesso a métodos contraceptivos, sendo que muitas delas não querem mais ter filhos ou gostariam de esperar mais”, disse Astrid Bant, representante do UNFPA no Brasil, durante o lançamento da pesquisa.
Trabalho e renda
As diferenças percebidas quanto ao gênero também estão presentes nos dados sobre a subutilização da força de trabalho: as mulheres interiorizadas apresentam taxa 3,5 vezes maior em relação aos homens – com incidência de41,3% entre as mulheres frente a 11,8% entre os homens.
Elas também recebem salários significativamente menores. O rendimento médio mensal da população venezuelana interiorizada ocupada com 18 anos ou mais é de R$1.450,98. Porém, quando é analisado apenas o rendimento das mulheres, o valor mensal fica em R$1.177,63. Esse valor é quase metade do salário médio pago às trabalhadoras brasileiras em geral – de R$2.215 ao mês.
De cada 10 pessoas interiorizadas, 8 estão dentro da força de trabalho, aponta a pesquisa. Porém, quando é feito o recorte de gênero, percebe-se que a participação feminina no mercado de trabalho é consideravelmente mais baixa – 72,2% contra 96,1% entre os homens. O mesmo se reflete nas taxas de desemprego: enquanto a taxa geral é de 11%, no recorte de gênero, ela é de 17,7% entre as mulheres contra apenas 6,4% entre os homens.
“Todas as modalidades de interiorização mostram um aumento de oportunidades, mas mulheres e homens têm oportunidades em graus diferentes. Historicamente, as mulheres têm dificuldades maiores em relação à inserção e permanência no mercado de trabalho. Isso também acontece no contexto atual”, explicou Vanessa Sampaio, gerente da área de Empoderamento Econômico da ONU Mulheres.
A conselheira da embaixada de Luxemburgo no Brasil, Nadia Mellina, ressaltou a importância dos dados obtidos: “Agora é a hora de usar esse conhecimento para desenvolver políticas que fortalecem as oportunidades e os direitos socioeconômicos para pessoas refugiadas e migrantes da Venezuela no Brasil.”
Desafios e vulnerabilidades
O impacto da dificuldade em conseguir emprego e renda reflete em diversas áreas – desde a incerteza de que haverá recursos para itens básicos, como moradia, até a insegurança alimentar. Das pessoas interiorizadas entrevistadas, 33,7% das mulheres e 30,8% dos homens afirmaram que já sofreram situação de insegurança alimentar após a interiorização.
Outro tema recorrente nas entrevistas é a discriminação: 26,1% das pessoas interiorizadas indicaram que, em algum momento, se sentiram discriminadas em função da nacionalidade.
Com um peso maior na vida de mulheres, a dificuldade de acesso à saúde, em especial à saúde sexual e reprodutiva, também é destacada na pesquisa. No momento das entrevistas, 4,8% das mulheres venezuelanas interiorizadas e 6,5% das mulheres abrigadas em Roraima informaram estar grávidas. Apenas 29,3% das interiorizadas e 35,9% das abrigadas afirmaram que queriam engravidar naquele momento, enquanto 28,5% das interiorizadas e 36,7% das abrigadas grávidas reportaram não querer mais filhas e filhos quando engravidaram.Esses dados apontam para a necessidade de aumentar o conhecimento sobre planejamento familiar e acesso à saúde materna nas diferentes fases da vida reprodutiva das mulheres em situação migratória e sobre o impacto da gravidez para os projetos familiares e pessoais.
Sobre a pesquisa
A pesquisa teve início em janeiro de 2021 e contou com duas fases de coleta de dados quantitativos: a primeira aconteceu entre maio e julho de 2021 e a segunda ocorreu entre os meses de outubro e novembro de 2021. Foram entrevistadas 2 mil pessoas de origem venezuelana interiorizadas entre março de 2020 e agosto de 2021 e 682 pessoas residentes em abrigos em Boa Vista (RR), para fins de comparação. Foram realizadas, ainda, entrevistas com 48 gestores, gestoras e representantes de organizações internacionais, sociedade civil e atores governamentais atuando no nível federal, estadual e local, direta ou indiretamente envolvidos na Estratégia de Interiorização.
O estudo foi desenvolvido pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), por meio do seu Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR) e do IPEAD (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas Administrativas e Contábeis de Minas Gerais), com apoio da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).
Para o lançamento, as agências apresentam um site especial onde, além do download da pesquisa, é possível ter acesso a infográficos e histórias de mulheres que refletem os dados da pesquisa. Confira em https://www.onumulheres.org.br/pesquisa-moverse/
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