O decreto nº 10.979, publicado no dia 25 de fevereiro, alterando a Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (TIPI) e reduzindo em 18,5% a 25% alíquotas do IPI traz de volta a discussão sobre os benefícios fiscais concedidos às empresas instaladas na Zona Franca de Manaus, criada pela lei 3.173/57 e alterada 10 anos mais tarde pelo decreto-lei 288, para promover o desenvolvimento do estado do Amazonas.
Em todos os anos eleitorais, é comum o discurso de candidatos à Presidência da República sobre a suposta necessidade da redução dos benefícios fiscais concedidos à Zona Franca, sempre baseado em argumentos de fácil contraposição. Agora, o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, publicaram o decreto que tem potencial para ferir de morte a ZFM, coincidentemente num momento em que ela tenta reverter decisão do Supremo Tribunal que por 7 votos a 4 acaba de julgar regulares os benefícios fiscais concedidos há 20 anos para a produção de bens de informática em todo o território nacional, sem qualquer compensação à Zona Franca e ao estado do Amazonas. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.399, o governo amazonense argumenta que tal concessão contraria os artigos 40 e 41, caput e parágrafos 1º e 2º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
A justificativa do governo federal para o decreto é que a redução das alíquotas fomentará a reindustralização do país e colocará produtos mais baratos nas prateleiras. Podemos chamar isso de mera expectativa, se não quisermos dar-lhe o nome menos educado, porém mais apropriado, de falso argumento, até porque não há estudos conhecidos, com codificações capazes de demonstrar seu potencial sucesso nesse espectro econômico. Ademais a pretendida reindustrialização não pode começar pela desindustrialização do Polo Industrial de Manaus, onde estão instaladas a quase totalidade dos fabricantes de motocicletas e parte expressiva da indústria eletro eletrônica do país.
Trata-se de mais uma tentativa de solução espasmódica, como tantas outras já registradas na história do país. Sua primeira consequência será tirar a competitividade das indústrias da Zona Franca de Manaus, a quem foram concedidos benefícios fiscais para estimular sua implantação em uma região muito afastada dos grandes centros industriais, estes mais bem servidos de logística de transporte, entre outras vantagens. Não há dúvidas que a medida irá desestimular a instalação de novas unidades naquele polo, além de causar a desativação de plantas há muito operando na Zona Franca, reduzindo as vagas de emprego e provocando queda de ICMS, significativa fonte de receitas do estado. O efeito negativo dessa reação em cadeia é fácil de se imaginar, prejudicando o estado do Amazonas e sua população. Basta mencionar que a ZFM responde por 86% do PIB amazonense.
Entre muitos caminhos possíveis, o governo federal escolheu o pior. Notadamente porque a medida vai deixar mais pobres estados e municípios da região Norte, já em situação de dificuldade e que dependem econômica e financeiramente dos recursos advindos do Fundo de Participação dos Estados e do Fundo de Participação dos Municípios. Com a queda da arrecadação, é questão de tempo para que batam às portas do Congresso Nacional em busca de aprovação da renegociação de suas dívidas com a União. Vale lembrar, ainda, que dos R$ 320 bilhões dos gastos tributários da União, R$ 123 bilhões são provenientes da renúncia do IPI e do Imposto de Renda, ou seja, representam 40% do total.
Há outros meios menos perversos para melhorar a industrialização do país, infelizmente ignorados pelo governo. Um bom caminho seria reduzir o COFINS, cuja arrecadação vai integralmente para os cofres da União, ao contrário do IPI, de arrecadação dividida entre União, Estados e Municípios. Entretanto, é mais cômodo empurrar a conta para os cofres alheios.
Outra questão, ainda mais grave, é a insegurança jurídica causada pela medida. A Constituição Federal de 1988, no ADCT , assegurou a manutenção da Zona Franca de Manaus garantindo a vigência das vantagens conferidas ao polo até 2073. O governo pode reduzir alíquotas de produtos, mas tal medida exigiria a aprovação de um projeto de lei prevendo a compensação igual ou maior que a subtração advinda da redução da alíquota para as indústrias instaladas e as que vierem a ter projetos aprovados na ZFM. Isso jamais poderia ter sido feito por decreto – inferior na hierarquia das leis -, como se deu, razão pela qual já enfrenta questionamentos judiciais.
O momento, portanto, é delicado, porém exige também um mea culpa dos sucessivos governos do Amazonas uma vez que, passados 55 anos da criação do polo, ainda não foram capazes de buscar alternativas para reduzir a dependência financeira do estado à Zona Franca de Manaus. Com o estado alimentando-se de uma fonte única e (até agora) segura, os sucessivos governos acomodaram-se. Sem novas formas de desenvolvimento, o PIB amazonense que há 20 anos correspondia a 2,32% do PIB nacional hoje representa apenas 1,42%, segundo o IPEA-Data. Ou seja, é 38,79% menor do que era há duas décadas, período em que as necessidades da população de seus 62 municípios somente aumentaram. E não é só: no mesmo período, o Amazonas perdeu 12% de sua participação no PIB da Região Norte.
A sociedade amazonense precisa questionar seus políticos sobre as razões dessa situação. Por que depois de meio século de incentivos fiscais – federais, estaduais e municipais – a economia do estado continua tão dependente desses incentivos? Por que Manaus, com mais de 50% da população amazonense e apenas 0,97% da área territorial do estado, responde sozinha por 80,3% do PIB estadual? E por que inexiste perspectiva para a diminuição desse grau de dependência? Ao contrário, nos últimos anos o governo estadual, com aprovação do poder legislativo, vem retirando recursos do Fundo de Desenvolvimento do Interior do Estado para custeio, inclusive pagamento de pessoal. O montante gira em torno de R$1,5 bilhão/ano.
É verdade que o governo federal pouco colabora para mudar a realidade amazonense porque não investe infraestrutura nem prioriza políticas públicas para reduzir as desigualdades sociais. Ao contrário, há décadas destina de 65% a 68% dos gastos tributários da União para o Sul e o Sudeste, justamente as duas regiões mais desenvolvidas do país. Ademais, Brasília insiste em desconhecer que para a manutenção da floresta amazônica em pé – necessidade reclamada mundialmente – é necessário fortalecer a atividade econômica local, desde que ambientalmente responsável. Nenhum favor, visto que a floresta em pé tem influência no sistema de chuvas que beneficia a agricultura e a produção de energia elétrica no Sul e no Sudeste. Em que pese tal responsabilidade federal, a população amazonense precisa também cobrar do Executivo e do Legislativo estaduais ações efetivas, no presente e para os próximos 10 anos, pelo menos, para que o Amazonas passe a caminhar cada dia mais com suas próprias pernas, em direção a um futuro melhor.
(*)Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). É autor do livro “Brasil, um país à deriva”.