O acadêmico Márcio Eduardo Almeida Batista, do curso de Licenciatura em Educação Física do Campus Boa Vista (CBV) do Instituto Federal de Roraima (IFRR), é o exemplo mais recente da importância do desenvolvimento de políticas voltadas às pessoas com deficiência (PDC) nas instituições de ensino superior (IES). Ele será um dos acadêmicos que colará grau neste mês, depois de ter vivenciado muitos desafios: enfrentou as aulas remotas no período da pandemia; teve de se adaptar à rotina de estudos a distância; passou por troca de intérpretes de Libras, tendo de se adaptar às metodologias dos profissionais; transpôs as barreiras da comunicação com os professores e os colegas de curso, além de desenvolver a pesquisa no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).
Ao longo dos últimos anos, o Instituto Federal de Roraima (IFRR) vem implementando a política de inclusão no âmbito dos cursos técnicos e superiores. Em 2015, o CBV teve o primeiro aluno surdo a concluir o ensino superior, Carlos Natrodt, que também colou grau no mesmo curso. Atualmente, além do Márcio Eduardo, o campus tem mais dois alunos surdos, sendo um no curso Técnico em Secretariado Subsequente e outro no Técnico em Informática Integrado ao Ensino Médio.
Além disso, a unidade tem primado por garantir não somente o acesso, mas também a permanência e o êxito dos estudantes com algum tipo de deficiência, dando-lhes o suporte necessário para que consigam se desenvolver nos estudos, participando das atividades teóricas e práticas desenvolvidas em todos os níveis e modalidades.
A intérprete de Libras Vanessa de Oliveira Souza acompanhou Márcio Eduardo durante os dois últimos módulos do curso. Ela relata que, nesse período, ele estava cursando algumas disciplinas que restavam na grade curricular do curso e fazendo seu TCC.
“Acompanhá-lo nesse processo foi uma experiência desafiadora, que contribuiu para meu desenvolvimento profissional. Ao vivenciar o dia a dia dele, no curso e nas disciplinas, pude perceber a importância da presença do intérprete de Libras em sala de aula, uma vez que as aulas são realizadas todas em português, uma língua de difícil acesso para o surdo. Sua primeira língua é a Libras, e o português escrito a segunda. Então, as aulas eram traduzidas do português para Libras”, disse.
Vanessa também explicou que uma das maiores dificuldades para o intérprete são os termos técnicos específicos de cada área do conhecimento, a exemplo da Educação Física, em que, muitas vezes, não há um sinal específico para a tradução.
“Durante as aulas, foram diferentes desafios enfrentados, entre eles os termos técnicos da área, para os quais, muitas vezes, não havia sinais em Libras. Os materiais escritos, algumas vezes, não são compreendidos por completo, devido às diferenças linguísticas entre a Libras e o português, exigindo estratégias específicas para sanar possíveis dúvidas. Nos casos em que não havia sinais, eram explicados os conceitos dos termos em Libras, apresentando exemplos com recursos de imagens que representassem o conceito em si. Quando ele não entendia alguma palavra do português, era-lhe apresentado o significado dessa palavra. E, assim, o trabalho era desenvolvido”, afirmou.
A coordenadora de Atendimento às Pessoas com Necessidades Educacionais Especiais, Áurea Luíza de Miranda, explica que o acadêmico foi sempre muito atencioso e dedicado aos estudos.
“O Márcio foi nosso aluno antes da licenciatura, no Projeto de Letramento de Português, Matemática e Libras para Surdos, ofertado para os estudantes surdos e para a comunidade surda externa. Ele ingressou na Licenciatura em Educação Física em 2020.1, passando pela pandemia, momento em que a interpretação a distância pelo Google Meet era um desafio, pois a internet não colaborava. Sempre foi muito estudioso, participativo e tinha uma relação muito boa com todos os professores, que sempre estiveram dispostos a promover a acessibilidade nos conteúdos e nas atividades curriculares. A relação com os tradutores e intérpretes sempre foi boa, os quais também participavam das aulas práticas, o que foi de extrema importância, pois o surdo é altamente visual, e ele aprendia melhor assim”, comentou.
Márcio Eduardo relata que a pandemia foi um marco em sua trajetória acadêmica, por ter sido um período de muitas dificuldades para acompanhar o ensino remoto, mas que, com todo o apoio recebido, conseguiu vencer essa fase tão difícil. O retorno ao ensino presencial foi decisivo para que pudesse ter um contato maior com os professores e alunos, e, assim, se desenvolver melhor.
“Com a volta às aulas presenciais, pude ter uma visão mais ampla e bem mais aprofundada do meu curso e dos conteúdos. A proximidade com os professores e os colegas me ajudou muito, assim como as aulas práticas me ajudaram a compreender melhor aquilo que era ensinado, e a ajuda dos intérpretes foi fundamental. Com o Guilherme Cury, tive um acompanhamento integral em todas as aulas teóricas e práticas, o que me ajudou muito. Já com a Vanessa, consegui vencer o desafio de uma nova adaptação, já quase no final do curso. Portanto, o apoio de ambos foi bastante decisivo”, disse.
Sobre as políticas de inclusão no âmbito das IES, Márcio Eduardo afirma que são indispensáveis para a construção de uma sociedade mais inclusiva, justa e igualitária. “A implementação dessas políticas pelas instituições em geral, mas principalmente pelas instituições de ensino, é fundamental, pois resulta no acesso ao conhecimento por essa parcela da população, ainda tão invisibilizada. O IFRR, por meio dessa política, contribui, sobretudo, para o nosso desenvolvimento profissional”, frisou.
TCC
A produção do TCC de Márcio Eduardo também contou com o apoio de um professor orientador intérprete. A professora Silvina Faria atuou como orientadora durante o desenvolvimento da pesquisa e afirma que esse apoio também faz parte das estratégias para a garantia do direito do aluno surdo.
“O processo de orientação é garantido pela legislação vigente, a exemplo da Lei 10.436/02 e do Decreto 5.626/05, e o IFRR cumpre a legislação garantindo a acessibilidade comunicacional. Nesse sentido, o CBV é referência e ofertou ao acadêmico tradutores e intérpretes de Libras, materiais adaptados e apoio técnico para a comunicação. A educação bilíngue foi essencial, com foco tanto na Libras quanto na escrita em português, permitindo pleno desenvolvimento acadêmico e cultural. Por um lado, havia profissionais qualificados para o apoio pedagógico em Língua Portuguesa/Libras e Libras/Língua Portuguesa, e, por outro lado, um acadêmico emancipado, decorrente dessa educação, o qual facilitou a comunicação com a sociedade em geral, ampliando suas oportunidades acadêmicas e, consequentemente, profissionais. Valorizar a cultura surda envolve reconhecer sua língua e identidade, promovendo inclusão e respeito à diversidade”, pontuou Silvina.
A pesquisa desenvolvida por Márcio Eduardo, sob a orientação da professora Silvina, tratou da acessibilidade comunicacional de Libras nas escolas públicas. Ele afirma que sua pesquisa é importante porque colabora para o desenvolvimento dos alunos surdos nas escolas.
“Conversei com coordenadores pedagógicos e professores para saber como é o ensino da Educação Física para os alunos surdos e pude constatar que esses alunos continuam sem um apoio efetivo, pois, apesar de os projetos pedagógicos das escolas contemplarem a necessidade do uso da Libras, isso de fato ainda não acontece, fazendo com que permaneçam à margem do processo de inclusão. Então, pude concluir que as coisas não mudaram muito, desde à época em que eu fui aluno na rede pública. Na minha época, eu frequentava o Centro de Audiocomunicação, onde tinha o apoio permanente de um intérprete, mas, ao chegar à escola normal, já não tinha esse acompanhamento, pois as aulas eram ministradas apenas com foco nos ouvintes. Então, acabei achando isso tudo normal com o passar do tempo. Eu participava das aulas de Educação Física, me integrava em uma brincadeira e outra, mas não compreendia as regras, porque não me eram explicadas. Logo, eu ficava sem entender muita coisa”, relatou o estudante.
Apesar do resultado de sua pesquisa ter apontado que muito ainda precisa ser feito em relação à implementação efetiva das políticas de inclusão nas escolas públicas, Márcio Eduardo incentiva outras pessoas da comunidade surda a ingressar no ensino superior, para que possam realizar seus sonhos e ascender a uma carreira profissional.
“A comunidade surda tem muita vontade de estar nas escolas e universidades, e de participar ativamente de todos os processos, mas acaba desistindo, seja por falta de apoio das famílias ou das instituições, ou mesmo por não saber como cobrar seus direitos. No entanto, as experiências que algumas instituições de ensino promovem no campo da inclusão são muito importantes para que mais pessoas se sintam motivadas e seguras para ingressar, sobretudo, no ensino superior, já que, nesse nível, há uma exigência maior. Outro fator bem importante é a escolha do curso, pois é preciso que a pessoa escolha um curso de que goste, com o qual se identifique e possa, assim, ter sucesso em seus estudos. Eu aproveitei bastante todo esse tempo em que passei no IFRR e me sinto preparado para atuar como professor de Educação Física”, completou o estudante.
Apoio especializado
Mais recentemente, como forma de garantir o apoio necessário aos alunos surdos no CBV, foi realizada a contratação de empresa especializada, por meio de recurso da Política de Assistência Estudantil, que garantiu a seleção de dois professores para o Atendimento Educacional Especializado (AEE) e dois intérpretes de Libras. Um deles é a Vanessa, que acompanhou Márcio Eduardo nos dois últimos módulos do curso.
Segundo o diretor-geral em exercício do CBV, professor Ananias Noronha Filho, é uma honra para a instituição ter contribuído para que o estudante concluísse com êxito o curso superior. Ele ressalta que todos realizaram um trabalho de ajuda mútua.
“O Márcio Eduardo nos ajudou muito mais, pois também aprendemos com ele e aproveitamos sua vontade de aprender para que, juntos, pudéssemos traçar caminhos para sua formação. Sabemos que um dos maiores desafios das instituições públicas é manter uma equipe de intérpretes para atender os alunos surdos, mas, graças ao recurso da assistência estudantil, conseguimos efetuar essa contratação e garantir o apoio de que o aluno precisava. No entanto, preciso enfatizar que o mérito é todo dele, que, com esforço e dedicação, cooperou para seu exitoso desempenho acadêmico. Muitos são os desafios, mas queremos contar com mais alunos como o Márcio, que nos ajudam a disseminar a importância de incluir e de apresentar à sociedade profissionais capacitados que se superam diante da deficiência que possuem, pois todas as pessoas, independentemente de sua condição, têm direito a uma educação pública, gratuita e de qualidade. Parabenizo todos que colaboraram para a formação do Márcio, em especial à equipe da Capne, aos docentes , à equipe pedagógica e ao próprio aluno”, disse.
Virginia Albuquerque