Coluna C & T: Eu não sei – Daniel Nascimento-e-Silva

Um cuidado que os cientistas têm e que os pretendentes a cientistas precisam ter é com a verdade. A verdade é algo que, em última instância, não existe no universo da ciência. Pode até parecer paradoxal, mas ao mesmo tempo em que renuncia à verdade, a ciência tem nela o seu referencial. Presume-se que haja uma verdade, no sentido de existência da realidade e que essa realidade pode ser compreendida. Os gregos diriam “o ser é” com esse exato pressuposto. Mas ao mesmo tempo, sabe-se que essa realidade é inapreensível em sua totalidade, tanto devido à incapacidade humana de compreendê-la quanto pela inexorabilidade da mudança. Novamente, os gregos diziam “O ser não-é”, também com essa intenção de entendimento. Quando se colocam essas questões, os cientistas saem da arena da ciência e adentram os espaços nebulosos da filosofia. A razão disso é que necessitam de “verdades” provisórias, ainda que inconscientes, para elaborar e conduzir seus projetos de investigação. E todo projeto de pesquisa é, na prática, uma confirmação de que, a priori, o cientista não sabe. O que conduz, portanto, suas buscas por entendimento é um grande “eu não sei”.

O não saber do cientista é a inexistência de uma explicação construída de forma sistematizada. Quando se diz “eu não sei” está-se referindo ao reconhecimento de que não se tem uma explicação assentada no método científico acerca do comportamento da realidade. Sob a ótica do método científico-tecnológico o desconhecimento é ainda mais consequente porque visa ao manuseio daquilo que se desconhece para a construção de um artefato físico capaz de solucionar determinado problema. Esse artefato físico é o que se chama de tecnologia. Disso decorre a necessidade de se percorrer duas etapas para a solução de um problema com o uso de tecnologias: primeiro, a construção ou coleta de conhecimentos; segundo, a organização desses conhecimentos de uma forma tal que se possa edificar a primeira versão da tecnologia, chamada de protótipo. Assim, quando o cientista diz que não sabe, que desconhece, sob a ótica do método científico-tecnológico está exprimindo a insuficiência do que sabe para iniciar a construção de alguma tecnologia que pretende materializar.

Pode parecer estranho e até mesmo frustrante, mas o dia a dia da construção de tecnologia é a busca de esclarecimentos e entendimentos, tanto do que não se conhece antes da elaboração do projeto, quanto aos desconhecimentos que surgem ao longo da execução do projeto. Quando surgem as luzes do entendimento, avança-se na prototipagem, testes e ajustes do protótipo; quando aparecem novas nebulosidades, o “eu não sei” volta a envolver a mente dos cientistas e colaboradores. Quando a ignorância se faz consciente e específica, um novo projeto é elaborado com a intenção de dissipá-la. Contudo, nem tudo na geração tecnológica é passível de ser projetado cientificamente. É aí que entram outras dimensões da ação humana, como a arte e o improviso. Artes e improvisos muitas vezes são recursos extras utilizados para dar conta e enfrentar o “eu não sei” individual e grupal. Sai-se de um estado de ignorância para outro constantemente.

Essas informações são importantes para não passarmos a ideia de que um projeto de geração de tecnologia seja o estabelecimento seguro e claro dos procedimentos necessários para tal. Na verdade, o projeto é apenas um marco referencial, especialmente na primeira parte, que busca a obtenção e geração de conhecimentos que permitam a prototipagem. Quando se tem o conceito da tecnologia, sua estrutura, funcionalidade, processos, relações e impactos ambientais fica facilitada a prototipagem. Mas facilidade não implica necessariamente em ausência de dúvidas e incertezas, relativa ou absoluta. A experiência tem mostrado que equipes assentadas na consciência de que não se sabe tudo o que é necessário para a tecnologia seja gerada são muito mais efetivas e consequentes do que as que se consideram com os conhecimentos suficientes para tudo. E a consequência dessa presunção de faz desde a fase de prototipagem e reaparecem constantemente até depois que a tecnologia está sob o poder do seu público-alvo. Vale a pena mencionar, também, que a presunção é um dos motivos de descontinuidade prematura de tecnologias.

Ciência é cautela, se se pretende publicar conhecimentos válidos e confiáveis. Tecnologia, por outro lado, é artefato capaz de solucionar problemas de forma segura e efetiva. Ter isso em mente reduz a possibilidade de se comprometer a execução de etapas posteriores justamente por se imaginar que aquilo que se presume é suficiente para enfrentá-las e superá-las. É essencial, portanto, que os entendimentos sejam baseados em dados para que tornem possíveis o improviso e o artifício daquilo que não é passível de se projetar cientificamente. Dito de outra forma, os conhecimentos assentados em evidências empíricas são recursos que proporcionam o surgimento de esquemas lógicos capazes de modelagem para a solução de problemas específicos que aparecem ao longo de todo o processo de geração de tecnologia. O que se propõe é que seja invertida a lógica. Ao invés de se agir com improviso e depois buscar amparo na ciência, que os procedimentos sejam baseados na ciência e, naquilo que o conhecimento científico não é possível, que se utilizem os recursos do improviso e da arte.

O “Eu não sei” representa uma tomada de consciência duplo. Primeiro, daquilo que se supõe saber sobre a realidade; e segundo, da limitação, insuficiência desse saber para dar conta de alguma intenção, que os filósofos chamam de dimensão teleológica. Os projetos de pesquisa tecnológica são sempre teleológicos, têm sempre uma finalidade bem especificada. Por outro lado, quando o cientista afirma “Eu sei” está sinalizando que tem um esquema explicativo baseado no método científico capaz de sustentar todo o processo de geração tecnológica. São essas etapas que detalharemos daqui para diante.

(*) Daniel Nascimento-e-Silva, PhD, Professor e Pesquisador do Instituto Federal do Amazonas (IFAM)

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