Da miséria ao empreendedorismo: em Roraima, indígenas Warao transformam fibra de buritizeiro em fonte de renda

A colheita da matéria-prima tem licença ambiental e a produção do artesanato conta com apoio para comercialização, por consequência, está reduzindo a mendicância. – Fotos: Marley Lima
 
Por Camila Dall’Agnol e Willians Dias

 

Qualquer crise financeira tem como consequência imediata a redução do poder de compra da população, e atinge mais rapidamente os vulneráveis, deixando ainda mais pobres quem já não tinha muito recurso para se manter. A economia venezuelana atravessa, há pelo menos uma década, esse cenário, de tal forma que expulsa de seu território quem se vê sem renda suficiente para alimentar a família.

Ramona Uruguay obtém renda a partir da venda dos artesanatos.

Estado brasileiro de fronteira, Roraima, viu (e sentiu), a partir de 2015, um verdadeiro êxodo de venezuelanos em busca de mudanças de vida. De acordo com a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), na publicação “Os Warao no Brasil”, indígenas e não indígenas se deslocaram da Venezuela em decorrência do desabastecimento de produtos básicos, hiperinflação e aumento da violência.

A agência afirma que já migraram para o Brasil pouco mais de 7.500 indígenas da etnia Warao, sendo que 4.253 vivem em Roraima. Os Warao são um grupo étnico originário da região do Delta do Orinoco, constituído originalmente há mais de oito mil anos na Venezuela, são a segunda maior etnia do país com cerca de 49 mil pessoas.

Yoli Uruguay vivia na cidade de Maturín, em local chamado Boca de Tigre, mas precisou se deslocar para o Brasil.

O relatório descreve que “em 2017, um indígena Warao, à época vivendo na cidade de Manaus, relatou que, antes de virem para o Brasil, ele e sua família alimentavam-se apenas com restos de comida encontrados no lixo. Eles saíam às ruas, rompendo os sacos de lixo em busca de alimentos. Quando chegou ao Brasil, ele conseguiu trabalho com carga e descarga de caminhões, mas se sentia fraco a ponto de mal conseguir realizar o serviço”.

Desnutridos, sem destino certo, ou ofício definido, os indígenas passaram a viver nas ruas e pedir esmolas. Entretanto, a própria cultura dos Warao ensinou-lhes a arte do artesanato, transformando em objetos a matéria-prima dada pela natureza.

O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), financia e promove soluções provenientes de qualquer parte do mundo, que apoiam os venezuelanos. No Brasil, o ACNUR e A CASA – Museu do Objeto Brasileiro foram contemplados com um projeto destinado a desenvolver as habilidades dos indígenas refugiados Warao nas cidades de PacaraimaRR, Boa Vista-RR e Manaus-AM.

Del Valle Josefina é uma das artesãs beneficiadas com o projeto “Artesanía Warao”.

Assim, nasceu o projeto “Artesanía Warao”, que em Boa Vista, capital de Roraima, e Pacaraima, cidade de fronteira com a Venezuela, região norte do Estado, cerca de 110 trabalhadores transformam a fibra de buritizeiros em peças, como cestas, redes e bolsas, que são comercializadas no mercado local e exportadas para a região sudeste do Brasil. Com o apoio, em pouco mais de três anos, as artesãs obtiveram renda de aproximadamente R$230 mil.

Ramona Uruguay faz parte do projeto. Mãe de sete filhos, ela morava na cidade de Maturín, estado de Monagas, na Venezuela. Ela viajou cerca de 1.000 km até o Brasil em busca de oportunidade.

“Aqui vendo meus artesanatos e posso comprar suco, farinha e frango. Aqui não passo fome. Com as vendas dos meus artesanatos consigo comprar o que preciso, o que quero comer, alimento-me bem. Lá na Venezuela, passava muita necessidade, gosto mais daqui, onde estou melhor”, disse.

Indígena Warao em meio a um buritizal em Boa Vista. 

O ofício é passado de geração para geração. Os mais jovens aprendem desde cedo cinco pilares importantes do povo da água (significado de Warao na língua materna): os contos, a dança, a gastronomia, os cantos e o artesanato.

“Quando tinha 7 anos de idade, comecei aprender a fazer artesanato com minha avó e minha mãe. Depois, eu me casei e continuei fazendo artesanato, mas não conseguia ganhar dinheiro com as peças que fazia, porque lá não tinha para quem vender. Vendia só um pouco que dava para comprar pouca coisa, como farinha para comer, mas não era o suficiente para conseguir sabão para lavar roupa”, afirmou Yoli Uruguay, filha de Ramona.

Artesãs fazem o beneficiamento da fibra do buritizeiro. – Foto: Marley Lima

A artesã Del Valle Josefina conta que o suporte é fundamental para quem, durante toda a vida, viveu do artesanato.

“Cheguei aqui e tinham muitas artesãs e eu ficava vendo. Havia uma moça que recolhia os artesanatos e levava. Ela se aproximou de mim e perguntou: “Irmã, você quer trabalhar fazendo artesanato?”, e eu disse: “Sim”. Porque sou uma artesã Warao e quero trabalhar”, destacou.

Produção

O trabalho começa bem antes do trançado das fibras. Logo nas primeiras horas do dia, é preciso desbravar o lavrado para colher a palha do buritizeiro. Antes, é feito o mapeamento dos buritizais que estão dentro, e nos arredores das cidades. Durante esse processo, cada artesã nomeia um homem da família, ou ela própria, para colher o material.

Artesã expõe ao sol a matéria-prima que será utilizada na produção do artesanato. – Foto: Marley Lima

Após a retirada das palhas da planta, a matéria-prima segue para o beneficiamento. Dessa forma, os fios são selecionados, lavados e expostos ao sol para serem, posteriormente, utilizados na produção. E todo cuidado é pouco para não perder nenhum fio.

Por ser uma atividade que não degrada o ecossistema local, o trabalho dos Warao possui licença ambiental da Secretaria Municipal de Serviços Públicos e Meio Ambiente (SPMA), em uma demonstração clara de que é possível empreender preservando os recursos naturais.

“Aqui na cidade de Boa Vista existe uma lei que não permite o uso ou a exploração dos buritis, por serem preservados. Houve um diálogo entre a Fraternidade Missões Humanitárias e o município de Boa Vista, então, através da secretaria municipal, foi possível a emissão de uma licença de coleta. A secretaria percebeu que essa forma não é invasiva ou destrutiva para as árvores, não é uma ameaça para o buriti ou pro buritizal da região”, afirmou Aajhmaná – Tissianie Cardoso Almeida, coordenadora da Missão Roraima Humanitária.

Aajhmaná – Tissianie Cardoso Almeida. 

Conforme Aajhmaná, a produção dos artesanatos reduziu a situação de mendicância enfrentada pelo povo Warao.

“A gente percebeu que esse movimento realmente impactou na saída das mulheres para a mendicância. Então foi quando realmente incentivamos essa atividade e fortalecemos a atividade com as mulheres”, ressaltou.

Ainda não é o suficiente. Dados da própria ACNUR, demonstram que “pedir” ainda é o principal recurso para as famílias indígenas, que enfrentam dificuldades ainda mais elevadas que o migrante não indígena. A própria língua é um desafio, já que muitos sequer conhecem a fundo o espanhol. Soma-se, ainda, a falta de documentação básica para registro da migração.

Dhalila Cruz. 

Capacitação para empreender

O projeto “Artesanía Warao” possui três eixos: obtenção de matéria prima, comercialização e capacitação. Portanto, as oficinas ensinam princípios do empreendedorismo, educação financeira, técnicas de vendas, como criar catálogos, precificação, fotografia, sacolas sustentáveis, entre outros.

“É nesse momento que a gente verifica com as artesãs as necessidades técnicas delas e desenvolvemos um conteúdo específico para que elas consigam absorver, compreender e fortalecer mais essa autonomia que nós desejamos”, salientou Dhalila Cruz, assistente de coordenação do Museu A CASA.

Evellys Oliveira. 

“O objetivo principal é que elas tenham um Pix para que na participação de feiras elas consigam naquele momento já passar para o cliente um Pix e o pagamento ser imediato. Então, a gente apoia nesse sentido. Na questão da tecnologia, nas redes sociais, abertura de contas de Instagram para que elas possam utilizar o celular e fazer uma venda imediata. Mesmo que elas morem dentro dos abrigos, elas consigam fazer essa venda online”, explicou a oficial de meios de vida do Museu A CASA, Evellys Oliveira.

Além disso, há a preocupação com a precificação justa dos produtos.

Juan Diego – Gustavo Pacífico Cabral, servidor humanitário. – Foto 12 Marley Lima

“A gente tem cursos de empreendedorismo onde eles aprendem a fazer os planos de negócio, aprendem a precificar. É muito importante para eles que são artesãos, pequenos empreendedores, que aprendem na teoria também para poder alavancar seu negócio”, esclareceu Juan Diego – Gustavo Pacífico Cabral, servidor humanitário.

Artesanato Warao no setor turístico local

Em 2024, ocorreu em Boa Vista o primeiro Salão Internacional de Turismo, promovido pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), em parceria com o Governo de Roraima. O artesanato produzido pelas mulheres indígenas Warao ganhou destaque.

Eliene Araújo. – Foto: Marley Lima

“O artesanato é uma das culturas mais fortes que Roraima tem. Então, como a gente está nessa tríplice fronteira, é importante que a gente faça essa integração também com os povos indígenas que têm uma cultura e uma das bases principais que eles têm é o artesanato para representar essa cultura. A intenção da gente é retornar o projeto que a gente tem de artesanato, para trabalhar com eles não mais em ações apenas como feiras, mas também de um acompanhamento maior” disse a gerente da Unidade de Competitividade Empresarial do Sebrae-RR, Eliene Araújo.

A chagada dos Warao em Roraima, junto com a prática da mendicância, provocou na população local, sentimento de rejeição e discriminação. As diferenças culturais e sociais incentivaram o preconceito e a xenofobia por diversas ocasiões.

Contudo, é preciso destacar que o Brasil possui uma das legislações (Lei nº 13.445/2017) mais modernas e acolhedoras do mundo quando o assunto é migração. Porém, independente da legislação, qualquer humano que recebe apoio encontra o caminho para a dignidade.  

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