
No oeste de Roraima, na fronteira com a Venezuela, a iniciativa pioneira de uma jovem de 23 anos está provando que a produção de cafés de alta qualidade é uma alternativa lucrativa e sustentável para produtores familiares – e um atrativo para manter as novas gerações no campo. Ana Karoliny Calleri, da comunidade indígena do Kawê, em Pacaraima, apostou na produção de café arábica em uma área de 1,5 hectare em sistema agroflorestal. O resultado é um produto de alta qualidade, que já conquistou certificação de origem e é comercializado em estabelecimentos de alto nível no estado.
O primeiro café artesanal indígena no Estado recebeu a marca Imeru, que significa “cachoeira” em macuxi – nome do dialeto e também da etnia da família. A inspiração foi o nome do sítio da família, Cachoeirinha, localizado na comunidade indígena Kawuê, dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
O cultivo do café entrou na família quase por acaso: a avó de Ana pediu ao pai que plantasse as sementes de um café que havia perto da região. “Nós não sabíamos nada sobre o cultivo e sobre a produção ou que existia café especial”, lembra. Três anos depois, um amigo pediu uma amostra para identificar o potencial dos grãos. Foi quando Ana começou a pesquisar para criar um café especial.
Esse mergulho incluiu cursos e capacitações na Fundação de Amparo à Pesquisa de Roraima (Faperr) e no Sebrae-RR. Porém, a opção pelo sistema agroflorestal veio do berço.
“O sistema agroflorestal sempre esteve presente na vida de todo mundo na comunidade porque é uma prática cultural milenar”, explica. “Usamos a mesma terra para produzir vários tipos de alimentos e utilizar menos espaço. Logo, a gente sempre fez sistema agroflorestal sem saber que era esse nome porque sempre trabalhamos assim”, completa. No caso, a lavoura de café foi combinada com bananeira e cupuaçu, além de macaxeira e milho, entre outras culturas. Isso favoreceu o crescimento das mudas, pois o café é uma espécie que se desenvolve bem sob a sombra das árvores, e superou o desafio da altitude, já que a propriedade da família fica 775 metros acima do nível do mar, ligeiramente abaixo dos 800 metros de altitude recomendados para o cultivo do arábica.
A produção é dividida entre os membros da família: o pai e o irmão cuidam da lavoura. Ana e a mãe cuidam do pós-colheita. Selecionam os grãos maduros manualmente, fazem a secagem de forma natural e torram o café em panelas comuns. Com isso, Ana conseguiu o primeiro café especial do tipo arábica catalogado em Roraima, com um sabor único, cítrico, porém, com alta doçura. A novidade permitiu à família criar uma rota turística na comunidade, complementando a renda gerada pela venda dos grãos, já embalados com a marca Imeru, para cafeterias de alto nível em Boa Vista. “Através do café, fiquei mais inserida dentro do sítio, cuidando dessa parte”, destaca.
Ana também percebeu que as práticas tradicionais da família agregavam valor ao produto final: “comecei a pesquisar em relação a preço e valorização da marca por práticas ambientais e sociais e vi que a gente consegue inserir a marca e valorizar ainda mais”, relata. “O que a gente já fazia, eu fui ver que a gente consegue impactar, dentro do empreendedorismo. Com isso, eu consegui divulgar mais e impactar mais as pessoas”.
Para que o valor dos conhecimentos tradicionais seja mais conhecido por outros jovens produtores, Ana está se engajando em uma campanha inédita no Brasil. “Mãos da Transição” visa sensibilizar produtores com menos de 30 anos a adotarem práticas produtivas responsáveis, que fortaleçam e dêem continuidade aos negócios de suas famílias ao mesmo tempo em que respondem aos novos desafios do século 21. Criada pela Purpose, agência de causas, ela engloba treinamentos, cartilhas e ações de divulgação na internet e redes sociais, que são os meios de comunicação mais acessados por jovens, incluindo um vídeo onde Ana conta sua história.
Sistemas agroflorestais beneficiam produtores familiares
Os sistemas agroflorestais, em que o café ou outras espécies são cultivadas ao lado de espécies arbóreas nativas e agrícolas, oferecem benefícios significativos em termos de resiliência a eventos climáticos, biodiversidade e sustentabilidade no longo prazo, em comparação com os sistemas tradicionais de monocultura. Isto ocorre porque os sistemas agroflorestais mantêm solos mais saudáveis, reduzem a erosão e proporcionam microclimas mais estáveis. Os sistemas agroflorestais sequestram mais carbono e apoiam uma maior biodiversidade, o que favorece indiretamente a produtividade do café, melhorando os serviços ecossistêmicos, como o controle de pragas e a polinização, o que reduz a necessidade de insumos. Estudos mostram que a produtividade é maior no cultivo sombreado.
Do ponto de vista econômico, sistemas agroflorestais diversificados reduzem a dependência dos agricultores de uma única cultura, tornando-os menos vulneráveis às flutuações do mercado ou ao fracasso das colheitas. Além disso, favorecem o fluxo de caixa, pois permitem a venda dos produtos em diferentes épocas, de acordo com as espécies cultivadas.