Professores alfabetizadores do 1º ao 5º ano do ensino fundamental de escolas indígenas de comunidades das regiões Uxiú, Alto Mucajaí, Baixo Mucajaí, Uraricoera, Apiaú e Pewaú estão em fase de organização do material que deve virar livro didático bilíngue para eles. O material, produzido em português e nas línguas maternas ninam e wai-wai, é resultado de meses de curso de formação do programa Ação Saberes Indígenas na Escola.
O programa é desenvolvido pelo Campus Boa Vista do Instituto Federal de Roraima (CBV/IFRR) com apoio da Pró-Reitoria de Extensão (Proex). Na última semana, teve o encerramento das atividades da edição 2023. Participaram da formação 77 professores falantes nas línguas indígenas ninam e wai-wai, que trabalham na alfabetização, e 8 professores orientadores, também falantes das línguas, responsáveis pela formação dos professores nas suas comunidades.
Devido ao garimpo ilegal dentro das terras indígenas, em especial à Yanomami, à ação de desintrusão dos garimpeiros, além de outros desafios de logística para se desenvolver a capacitação nas comunidades, a metodologia do programa precisou ser adaptada. A formação inicial e continuada de 200 horas para os orientadores indicados por suas comunidades ocorreu na Capital, com vários encontros mensais de quatro dias de atividades.
Após receberem a capacitação em Boa Vista, ao longo de 2023, os professores orientadores seguiam para dentro das comunidades para executar suas nobres tarefas: repassar o aprendizado para os professores alfabetizadores, agora chamados de cursistas, por meio da formação de 180 horas. A missão dos orientadores era ajudá-los na construção do material que vai compor o livro didático, trabalho que envolveu teoria e prática, além de ouvir a comunidade, como anciões, adultos, mulheres, crianças, jovens e líderes.
Dos 77 professores alfabetizadores, 42 eram ninans, da Terra Indígena Yanomami (TII); e 35, wai-wais, da Terra Indígena Trombetas-Mapuera, Município de Caroebe, sul do Estado de Roraima. A língua ninam é uma das seis faladas pelo povo ianomâmi. Para os ninans, as aulas dos cursistas ocorreram na Comunidade Ilha 2, região do Baixo Mucajaí; para os wai-wais, na Comunidade Japatupizinho, Terra Indígena Trombetas-Mapuera, Município de Caroebe.
Por ter professores de várias comunidades, a mobilização para os encontros com os ninans, segundo uma das professoras orientadoras Atener Ambrósio da Silva, da etnia wapixana, ocorria dias antes, para dar tempo de os alunos se organizarem. Ela trabalha com os falantes da língua ninam há mais de dez anos.
Isso se deu porque alguns levavam horas navegando de canoa pelos rios para chegar até o local do curso, sem contar as andanças a pé e as caronas de carro no trajeto. Segundo Atener, os participantes da Escola Estadual Indígena Yanomami Koraxirã, localizada na Comunidade Uxiu, na TIY, Município de Alto Alegre, levavam nove horas de canoa para chegar de sua comunidade até o curso. “Foram muitos desafios”, disse.
Depois do encerramento das atividades da edição de 2023, os professores orientadores, com o apoio da equipe de supervisão da Ação Saberes Indígenas, trabalham na escolha do que foi produzido pelos cursistas e que vai ajudar no letramento (aprender a ler e escrever de acordo com as práticas sociais) e no numeramento (compreender e resolver problemas matemáticos no contexto social).
Conforme a coordenadora do Núcleo da Ação Saberes Indígenas na Escola, professora Marilene Alves Fernandes, o material está sendo organizado por temas, de acordo com o alfabeto da língua materna dos ninans e dos wai-wais, que dialogam diretamente com a realidade cultural das comunidades, respeitando cultura, arte e saberes dos ancestrais. Depois de separado e organizado, o material será digitalizado pelos professores.
“A gente está organizando toda a produção feita por eles. Eles trazem essa formação e, junto com o formador, vão separando o material por temas, de acordo com o alfabeto da língua materna deles, no caso, os ninans e os wai-wais. E aí eles vão dando corpo ao livro. Após essa separação, eles criam capa, organizam de uma forma que fica o livro físico. A partir desse material organizado, vem a fase da digitalização, que também é feita por eles. Quando estiver tudo digitalizado, será encaminhado para a formadora, que é linguista, e ela fará a correção do material, da escrita, que será na língua materna e em português. É um trabalho demorado, porque eles produziram muita coisa. Então, demanda tempo”, explicou Marilene.
Marilene reforça que o programa tem o objetivo de promover formação continuada de professores indígenas, principalmente daqueles que atuam nos anos iniciais do ensino fundamental, e dos professores que trabalham com o ensino da língua materna, priorizando o letramento, o numeramento e a produção de material didático em língua materna ou bilíngue, dependendo da especificidade.
Para a professora Atener, o livro será um legado. “Esse livro vai ajudar muito, porque, além de produzido na língua deles (ninam), da maneira que eles estão entendendo, vai ajudar mais as crianças, porque elas vão ver a produção do livro na língua delas e em português. Para mim, está sendo gratificante e uma experiência e tanto, porque, a cada dia, vendo eles aprendendo e se desenvolvendo, é muito gratificante. Com certeza, ver a produção do livro e o protagonismo dos professores ninam, é gratificante”, comentou.
O professor orientador Anarcindo Onesimu Wai-Wai, morador da comunidade Jatapuzinho, destaca os trabalhos em equipe, com o registro das conversas com os anciões e dos debates com os professores para o registro do conhecimento do povo wai-wai. Ele fica muito feliz com a perspectiva de os professores da língua materna terem material didático para ajudar na sala de aula.
“Todos, todos vão ter acesso. Então, a gente espera o resultado desses saberes como livro. A gente espera muito que seja publicado para que material chegue às nossas escolas, porque é muito importante, porque, antes, a gente não tinha um material didático. Hoje nós temos; só falta publicar o nosso trabalho. Então, como não tinha um material didático, os professores da língua wai-wai precisavam muito ter um material didático. Ajuda muito no planejamento deles. Também ajuda a transmitir para as novas gerações. É importante ter esse conhecimento na escola e fora dela, porque a nossa cultura wai-wai não pode ser abandonada. Precisa ter transmissão de conhecimento para que as novas gerações possam ter esse conhecimento”, afirmou Anarcindo.
Sentimento parecido tem a professora Atener, em volta do material produzido, no corre-corre da separação do que vai compor o livro didático para os ninans. “Para mim é uma satisfação esse trabalho. Está sendo gratificante e uma experiência e tanto, porque, a cada dia, vendo eles [sic] aprendendo e se desenvolvendo, é muito gratificante. Com certeza, ver a produção do livro, com o protagonismo dos professores ninam, é gratificante”, disse.
A experiência de compartilhar e aprender mais sobre seu povo é compartilhada pelo professor Inácio Pereira Gutierrez, do povo wai-wai, morador da Comunidade Jatapuzinho, distante 466 km da Capital, Boa Vista. Formado em 2015 pela Universidade Federal de Roraima, no curso de Licenciatura Intercultural, ele destaca a importância do aprendizado e de relembrar seu passado. “Para mim foi muito importante a busca por conhecimento, assim como aprender durante curso de Saberes Indígenas”, contou.
IFRR atendeu mais de 900 professores indígenas em cinco edições da Ação Saberes Indígenas na Escola
Incluindo os 77 professores alfabetizadores indígenas formados em 2023, o Instituto Federal de Roraima desenvolveu cinco edições do programa Ação Saberes Indígenas na Escola desde 2014. Foram atendidos mais de 850 professores alfabetizadores que atuam no ensino da língua materna, do 1º ao 5º ano, e mais de 48 orientadores de estudos, que são os responsáveis, nas escolas, nas comunidades, por fazer a formação dos professores alfabetizadores.
No período de 2014 a 2018, o IFRR realizou quatro edições do programa, visto que as atividades foram interrompidas, de 2019 a 2022, com a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), do MEC. Em 2023, o governo federal recriou a secretaria. Gestores da pasta e de outros órgãos federais vêm a Roraima e pedem pauta com gestores do IFRR. Um dos pontos de discussão, a retomada das ações do programa. Em maio de 2023, diante de tantos desafios de logística e da retirada de garimpeiros das terras indígenas, o IFRR iniciou a 5ª edição do Ação Saberes Indígenas.
Conforme a coordenadora do Núcleo da Ação Saberes Indígenas na Escola, professora do IFRR Marilene Alves Fernandes, os encontros são realizados nas comunidades indígenas, e, nesses encontros, além dos professores, a comunidade é envolvida, por exemplo, os anciões, os jovens, os mais velhos, as mulheres, as crianças. “Porque é um trabalho que visa à pesquisa, e, muitas vezes, as histórias são contadas pelos anciãos, e os professores, juntamente com os orientadores, fazem essa busca ativa e registram essa narrativa dos mais velhos”, explicou.
A sexta edição do programa está prevista para iniciar-se ainda neste primeiro semestre. “Nesta 5ª edição, as formações previstas, de seis meses, foram finalizadas. Agora a gente está organizando toda a produção feita pelos professores indígenas. Eles trazem essa formação e, junto com o formador, vão separando o material por temas, de acordo com o alfabeto da língua materna deles. E aí eles vão dando corpo ao livro”, explicou Marilene.
Conforme ela, esse é um trabalho desafiante. “É muito bom quando a gente chega ao final e vê a riqueza do material que eles produzem, porque os professores de língua materna não têm material didático para trabalhar na língua materna com a comunidade. Os professores, principalmente os ninans, que participam da formação dos saberes, ainda estão no processo de formação inicial. Os wai-wais já têm certa escolarização e também professores que atuam no ensino da língua materna sem a formação específica de magistério ou de licenciatura. Então, isso é bem desafiante para nós, como coordenadores, supervisores e formadores, porque é um trabalho que demanda tempo, e, nesse processo, enfrentamos muitos desafios”, disse.
No IFRR, a Ação Saberes Indígenas atendeu cinco etnias até 2018, os macuxis, os taurepangs, os ingaricós, os wai-wais e os wapixanas. Em 2023, com a retomada, o IFRR passou a atender os ninans, do povo ianomâmi, e novamente os wai-wais. “Ano passado, a Secadi retornou para garantir o reconhecimento das políticas públicas para todos os povos, sejam indígenas, afrodescendentes, imigrantes, das águas, das florestas, periféricos e outras políticas de inclusão com populações vulneráveis. Assim, os professores indígenas de Roraima seguem contemplados para a formação ninan, do tronco linguístico ianomâmi e wai-wai”, comemorou a pró-reitora de Extensão do IFRR, professora Roseli Bernardo.
Rebeca Lopes